Trecho do livro “Há 2000 anos”, referente ao julgamento de Jesus
“…Amargamente compungida em face do acontecimento, Lívia considerou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente à proteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaré os ataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lhe ser possível socorrer-se do prestigio do companheiro, em tais circunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos os modos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete, notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravam particularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo as suas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, a prisão inesperada de Jesus Nazareno – acontecimento que desviara todas as atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelos feitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a sua intervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligados aos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo das pregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionário inconsciente, contra os poderes políticos do Império.
Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos de atenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado.
Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura de Sulpício Tarquinius, que vinha da parte de Pilatos solicitar ao senador o obséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governo provincial, a fim de resolver um caso de consciência.
Públio Lentulus não se fez rogado.
Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveria esquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada, marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.
Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para o Mestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe o mundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao Pai Celestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seu coração considerava lúcido emissário dos céus, suplicando, a todas as forças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia dos homens.
Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível de Jerusalém, Públio Lentulus foi tomado de extraordinária surpresa.
Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, em gritaria ensurdecedora.
Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a um gabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos a dedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militares graduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavam eventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelo governador, que se dirigiu a Públio Lentulus, nestes termos:
- Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, um homem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno. Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros do Sinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, com palmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentença proferida pelos sacerdotes de Jerusalém.
Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardente visionário de coisas que não posso ou não sei compreender, surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.
Neste comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia, que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.
- Ainda esta noite – continuou Pilatos, apontando para a esposa -, parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minha orientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu não deveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homem justo.
Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos os patrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto, de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nem colida com o meu ideal de justiça.
Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade de representante direto do Senado e do Imperador, entre nós, neste momento?
- Vossa atitude – obtemperou o senador, compenetrado de suas responsabilidades — revela o máximo critério nas questões administrativas.
E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta com a cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho e vaidade, continuou:
- Conheci de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, onde ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações, ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto social ou político, do Império. Certamente, alguém o toma aqui como pretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome as ambições e o despeito dos sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhores escrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, a quem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhante assunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui em Jerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sã consciência um caso como este, considerando-se a circunstância de que julgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todos os elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.
A idéia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido à presença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se, rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.
Todavia, no palácio do Tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazaré recebido com profundo sarcasmo. Apelidado pela gente simples como “Rei dos Judeus” e simbolizando a esperança de certas reivindicações políticas paranumerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famoso discípulo de Kerioth, o mestre de Nazaré foi tratado pelo príncipe de Tiberíades como vulgar conspirador, humilhado e vencido.
Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta de ridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse o prisioneiro com o máximo de ironia.
Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes do tempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, e coroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos, devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaça exacerbada.
Muitos soldados romanos cercavam o acusado, protegendo-o das investidas da massa furiosa e inconsciente.
Jesus, trajando, por irrisão, como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhos profundos, indefinível melancolia.
Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seu julgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos, exclamando:
- Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apela também para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória do profeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamente agravada perante o povo, porquanto, como suprema autoridade em Tiberíades, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos a entender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossa justiça e administração.
Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me diz que esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhante conjuntura?
Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselho de patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada, em espantosa gritaria.
Um ajudante de ordens do governador, de nome Polibius, homem sensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindo-se a Pilatos:
- Senhor Governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa, se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentro do menor prazo possível…
- Mas, isso é um absurdo – retrucou Pilatos, emocionado. – E, afinal, que diz o profeta, em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra de recriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?
- Senhor – replicou Polibius, igualmente impressionado -, o prisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-se conduzir pelos algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo o supremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulos da sua doutrina!
Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e, inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar as legiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto, mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhação infamante, para que se cumprissem as determinações das Escrituras. Fizlhe ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de se ordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, de maneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhante recurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens, para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está nos céus!
- Homem extraordinário!… – revidou Pilatos, enquanto os presentes o acompanhavam estupefatos.
Polibius – continuou ele -, que poderíamos fazer para evitar-lhe a morte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?
- Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro a pena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainar as iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãos de celerados sem consciência…
- Mas, os açoites?! – diz Públio Lentulus, admirado, antevendo as torturas do horrível suplício.
- Sim, meu amigo – redarguiu o governador, dirigindo-lhe a palavra com atenção respeitosa -, a idéia de Polibius é bem lembrada. Para evitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão deste recurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e sei de suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam.
O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maiores males.
Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aos berros estridentes da multidão amotinada.
Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentaram por momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observarem os movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia que os peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para as comemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem à condenação do humilde Messias de Nazaré. De quando em quando, fazia se mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, que dispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.
O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, na suas provações dolorosas e extremas.
Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviam divisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, nas margens do Tiberíades, estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da fronte dilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimas dolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos de palidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesma disposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavam agora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpo vacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundo saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando amargurada e indefinível melancolia.
Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, que baixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobre humana majestade.
Públio Lentulus voltou intimamente compungido ao interior do palácio, onde, daí a poucos minutos, retornava Polibius, cientificando o governador de que a pena do açoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida, que reclamava a crucificação do condenado.
Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se a Pilatos, com intimidade:
- Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processo consumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? As massas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a de hoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar desse homem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridoso e justo.
…”
Livro: “Há 2000 anos…” – Francisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel – 29ª edição